quarta-feira, 21 de abril de 2010

O casal desconhecido


Amanhece por trás das cortinas, e o casal desconhecido acorda aninhado, sem pressa, com a falta de cerimônia de quem entrelaça as pernas e suja de vinho o lençol na primeira noite. O casal desconhecido aos poucos percebe que divide a cama em terra de ninguém: um muquifo alugado num subúrbio de Paris, um apartamento emprestado em Botafogo, a locação de um filme barato na Gomes Freire - não importa onde, a cena é a mesma.
O casal desconhecido levanta sem muita pressa ou palavras (bendita a formalidade do semianonimato) e, com sorte, encontra café no armário.
"Açúcar ou adoçante?" é uma das perguntas inaugurais que fazem o casal desconhecido menos desconhecido na manhã seguinte. É o começo do fim, alguém diria. Como "eu te amo", e daquelas frases que só têm sentido quando ditas pela primeira vez. Depois viram tralha semântica, perdem o significado até que sejam repetidas para outrem - com quem se formará o próximo casal desconhecido.
Mas, para isso, haverá tempo.

***
Ainda que se defina na noite anterior uma érica da ausência futura (de que aquela será a última noite, e este, o último despertar), depois do primeiro café e do primeiro jornal lido em silêncio (bendito o silêncio do semianonimato), o casal desconhecido começará, desgraçadamente, a se conhecer.
Essa iniciativa normalmente cabe à nós mulheres: contamos a idade com que começamos a mestruar, quantos namorados tivemos, quanto tempo durou cada um e enchemos eles de detalhes que não interessam naquela primeira manhã. Essas mesmas historinhas, passados dois ou três meses, representarão o desenho das portas do inferno na Terra para eles, já convertidos em partícipes ciumentos de um novo casal.
E nisso também haverá alívio: o inferno é real.

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O espaço da cama do casal desconhecido nesta primeira manhã é, ainda, terreno neutro. Essa neutralidade tem mais a ber com o tempo que desenhamos sobre os lençóis alheios do que sobre o espaço em si (Ernesto Sábato em "Heterodoxia": Almejamos a eternidade, insto é, o presente absoluto.")
O momento em que a cama se converte em tabuleiro de xadres ou terreno minado se confundem com o dia em que o casal desconhecido começa a fazer planos de sobrevida, mesmo que em segredo.
O casal desconhecido, quadno começa a se conhecer, esquece que a única eternidade possível é (foi) aquela, da primeira manhã, a última (a primeira, a única) vez em que estiveram realmente ao mesmo tempo no mesmo lugar.


música do dia: Vida Real - Engenheiros do Hawai

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